quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Metodologia do treinamento para crianças

Equipe pentacampeã infantil do Fluminense, com destaque para Bernard (12), que viria a ser vice-campeão olímpico em 1984 junto com outros tricolores – Fernandão, Badalhoca e Bernardinho.
Bené, Piaget e Vygotsky, em comum o que têm os três? São falecidos, mas teriam jogado na mesma equipe?

À primeira vista pode parecer estranho acomodar num mesmo artigo esses três nomes. Para aqueles que são do ramo devem estar se perguntando, “quem são esses dois estrangeiros”? No início de suas atividades Bené sofreu preconceito: era negro, baixo e vestia-se quase sempre espalhafatosamente. Nascido em Friburgo, cidade serrana do Estado do Rio, cedo foi adotado e veio com a família morar em Copacabana. Após uma década de dedicação voluntária em Niterói, foi acolhido no Fluminense F. C. levado por Arlindo Lopes Corrêa em 1959-60, e ali realizou um dos melhores trabalhos com iniciantes. Por suas mãos passaram quatro medalhistas de prata nos Jogos Olímpicos de 1984: Fernandão, Badalhoca, Bernard e Bernardinho. Como teria ele conseguido tamanho resultado, quando se sabe que não cursou escola, universidade, ou qualquer curso de voleibol?
Breve história - Conheci-o em 1951, aos 11 anos, promovendo treinos na vila onde morava, em Niterói. Aos 18 anos convidou-me para atuar no Clube Gragoatá, minha primeira experiência como atleta. A seguir transferi-me para o Botafogo. Bené teve rápida e tumultuada passagem pelo alvinegro e fixou-se em seguida no Fluminense. Os anos se passaram e vez por outra visitava-o em sua nova casa e indagava por seus discípulos ou, como gostava de chamar, beneditinos. Em 1965 fui técnico das equipes femininas do tricolor convivendo um pouco mais com ele. Sempre estive intrigado e me perguntava o que tornava tão diferenciada sua metodologia dos demais treinadores. Concluí que era não só o jeito de lidar com os pequenos atletas, mas também a forma de treinar, isto é, insistentemente procurava colocar os meninos em situação de jogo, o que lhes acrescentava desenvolvimento tático eficaz e criativo. As crianças treinavam – e jogavam – com alegria, tinham orgulho de pertencer àquela equipe e estar ali com ele. Enfim, confiavam nele. E com o passar dos anos colecionaram muitos títulos. O que lhe faltava em estudo, sobrava-lhe em intuição, resultado de uma vida desapegada e consagrada ao voleibol.
Seu entendimento quanto à forma de treinar pareceu-me bastante piagetiano, uma vez que proporcionava aos pequenos atletas oportunidades de criarem soluções e novas formas de comportamento diante de situações inusitadas. E fazia grande diferença nos embates, pois, do outro lado, os adversários quando colocados à prova, voltavam seus olhos para o treinador à busca da solução (vivências) que não tinham no seu repertório.

A educação no comportamento emocional
Os gregos diziam que a filosofia nasce da surpresa
O jogo coloca o indivíduo numa situação emocionalmente delicada. E pode-se indagar: “Que repercussões isso terá na vida dele?” Seguramente, se bem usado, é o melhor caminho para uma educação de qualidade. São muitas as situações de jogo. Vamos focar o atleta que, de repente, tem que encontrar uma solução rápida para determinada circunstância. Como funciona esse mecanismo na mente humana? Nesse momento faço um pedido de tempo para colocar em campo um dos meus melhores conselheiros, o russo Lev Semenovitch Vygotsky: “Consideram-se as emoções como um sistema de reações prévias, que comunicam ao organismo o futuro imediato do seu comportamento e organizam as formas desse comportamento. Abre-se, então, para o pedagogo, um meio sumamente rico de educação dessas ou daquelas reações. Nenhuma forma de comportamento é tão forte quanto àquela ligada a uma emoção. (...) As reações emocionais exercem a influência mais substancial sobre todas as formas do nosso comportamento e os momentos do processo educativo. A experiência e estudos mostraram que o fato emocionalmente colorido é lembrado com mais intensidade e solidez do que um fato indiferente”.
Lembremo-nos da técnica empregada em cursos para executivos de empresas que obedecem aos mesmos princípios quando se colocam os indivíduos em situações de risco – arvorismo, tirolesa, bungee jump, montain biking, paraquedismo – para que experimentem emoções máximas e, mais à frente, tenham capacidade para enfrentar novos desafios em suas decisões funcionais, e mesmo de vida. Daí o poder excepcional que têm sobre a educação dos sentimentos o desenvolvimento e a administração dos movimentos conscientes. Sua prática exercita o corpo e a mente, desenvolve o equilíbrio interior, além de aliviar o estresse diário. Para aprender a tomar uma decisão deve-se considerar a emoção e o interesse, ponto de partida para qualquer trabalho educativo. O aspecto emocional do indivíduo não tem menos importância do que outros aspectos e é objeto de preocupação da educação nas mesmas proporções em que o são a inteligência e a vontade. Mais adiante, imaginei que lhe faltava algo que talvez eu pudesse acrescentar. Pedi permissão para mostrar-lhe uma nova concepção de treinamento. Precisaria de não mais do que três ou quatro aulas. Pedido feito, pedido concedido.
Metodologia – Para alcançar um ensino de qualidade calquei-me no princípio – aprender brincando e jogando – herdado do professor alemão Gerhard Dürrwächter e confirmado por Vygotsky: “A brincadeira, o melhor mecanismo educativo do instinto, é ao mesmo tempo a melhor forma de organização do comportamento emocional. A brincadeira da criança é sempre emocional, desperta nela sentimentos fortes e nítidos, ensina-a seguir cegamente as emoções, a combiná-las com as regras do jogo e o seu objetivo final. A brincadeira constitui as primeiras formas de comportamento consciente que surgem na base do instintivo e do emocional. É o melhor meio de uma educação integral de todas essas diferentes formas e estabelecimento de uma correta coordenação e um vínculo entre elas”.
Muni-me de material específico – quatro mini redes, bolas de tênis (50), bolas coloridas (bexigas) etc. Dei início à aula cercado de tensa expectativa por parte do meu alvo principal – Bené – tendo percebido também algum burburinho entre as crianças, naturalmente pelo fato inusitado de um estranho ter-se colocado entre elas e seu famoso treinador (ele jamais permitiria isto a um outro). Em relação ao desenvolvimento da aula fiquei devendo uma explicação ao Bené, mas tive a clara impressão de que não seria necessária, tal o seu entusiasmo. Além disso, não faria qualquer diferença saber sobre a zona de desenvolvimento proximal que, aliás, poderia ser interpretada como outro local. Falarei sobre isso no próximo artigo e, evidentemente, sobre a repercussão das aulas. Aguardem.

Um comentário: